Já vi muitas neves em Paris, mas nunca testemunhei como neste inverno dias seguidos desta penugem branca que caia do céu. A quantidade foi realmente enorme e todos que me conhecem perguntavam se eu tinha conseguido correr ou iria ter coragem para isto. A questão me era sempre colocada com uma expressão que denunciava o pensamento: “Manoel não conseguiu correr. Manoel não vai correr...”.
Realmente para aquele que nasceu e cresceu em Copacabana e que com seis meses foi colocado nas águas salgadas do Atlântico Sul, parece um pouco excessivo realizar o jogguing sobre este manto de gelo.
O verglas (palavra derivada de vidro que derrapa) era presente em todos os lugares e os tombos e as lesões se fazem frequentes nestas condições, mas para tudo na vida há que se ter um desejo e através dele a aproximação e o encontro de uma técnica para realizar o que se quer. Observei que até nos países mais frios e com alto índice de neve havia os seus corredores de rua. Lembro-me que em Helsinki, uma das capitais da Europa mais atoladas de neve que vi na minha vida, tinha seus corredores e assim decidi que iria encontrar por mim mesmo o modo de pisar, a correta posição do corpo para que a derrapagem fosse evitada. Assim fui e nesta maneira atenta mantenho em qualquer temperatura e condição a minha uma hora diária desta atividade tão presente em minha vida.
Outro dia durante a minha corrida polar, vi uma senhora no chão que me olhou e com os olhos meio desamparados e me disse: “Monsieur... Monsieur, por favor, me ajude a levantar. Acho que quebrei o meu pulso”. Enquanto a ajudava, pensei que aquele tombo tinha ocorrido pela falta de prudência. Caiu porque não fez atenção. Xingou a neve com a francesa indignação e com isto não se responsabilizou.
Pensei ali que a neve era um momento de crescimento, de vitória para cada um que deveria enfrenta-la para realizar o seu dia. O volume de neve era tanto que os carros estacionados estavam cobertos e assim parecia um quadro do século 19 e na mesma cena a senhora esparramada no chão vencida, sem condições psicológicas para usufruir. Olhei o sapato: uma bota de couro com o solado liso que a fazia pronta para esquiar como um trenó. Preparou-se para o tombo. Foi vencida pela falta de um correto preparo.
Não é assim que nos tornamos vencidos?
Sem se habilitar para o que se vai passar uma pessoa cai... Sem se habilitar, as situações da vida se tornam um verdadeiro verglas. O tombo daquela senhora em nada estava ligado à idade como muitos poderiam afirmar. O Tombo veio pela displicência em relação ao que o contexto daquele momento exigia.
Cada situação exige de nós algo.
No domingo auge desta realidade parisiense polar fui mostrar a rue Mouffetard, uma das mais antigas de Paris, e lá sentamos no café La Contrescarpe que é decorado com livros e uma iluminação muito agradável. Pedi ao filho de uma amiga para pegar aleatoriamente um livro da estante que estava atrás dele. Saiu “La Maison des Autres” de Bernard Clavel. Abri como se tivesse com um livro da sorte e na página estava um pensamento assinado por Alain: “Um ser que nada aprende é uma grande criança”. O que é uma criança? Um ser repleto de possibilidades, mas que por falta de experiência precisa do outro incondicionalmente. Um ser que precisa aprender para se preservar e viver sem se machucar.
Fui ver com calma a exposição das grandes caricaturas do século 20 que estão expostas nas grades dos muros do Jardim do Luxemburgo. Uma delas me chamou atenção pela proximidade com o tema desta crônica.
Esta charge que fotografei, nos fala que para uma civilização se desenvolva implica que cada adulto tem que reconhecer a necessidade contínua de aprender a lidar com os elementos que fazem parte da vida, numa posição de aprendizagem disponível e curiosa com o de uma criança.
Pensei no momento que tirei esta foto na tempestade de neve que caiu, pensei nos passeios sobre a neve, pensei no manto branco... Pensei que qualquer amor que cai do céu, se o vivermos de olhos fechados iremos derrapar... Pensei também que qualquer coisa pode ser um verglas que tem potencial para machucar aqueles que não sabem caminhar sobre suas realidades...
Pensei que quem não se habilita a viver com conhecimentos... Mesmo nos mantos de paz... derrapa e se machuca.