sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Como Somos?


Comecei no início do ano a pensar sobre os projetos que fazemos e dentre eles sempre temos a vontade de modificar algo em si ou mesmo na vida.
Isto implica pegar a nossa substância e fazer uma nova receita… 
Mas realmente com quais elementos somos constituídos?
Como fazer uma receita e colocar no forno do amadurecimento sem solar?
Aliás o famoso brownie é um bolo solado… O chefe errou, provou o erro e gostou… Seria bom se ao errarmos também acertássemos… 
De qualquer modo somos feitos de que?
Em nossa constituição ao longo da vida, desde o nascimento somos propensos a criar um modo de pensar, se comportar, de falar, de vestir, enfim um modo de ser.
A pessoa constrói uma tendência através das próprias características e da cultura que a molda e uma vez que as enraíza dificilmente ela irá agir fora desse padrão.
Diante deste aspecto, podemos afirmar que vivemos presos as nossas  construções internas. 
Pessoa alguma está imune a esse constructo e é por isso que realizamos nos hojes da nossa existência através do modo automatizado, que por serem gestos habituais, são desconectados da nossa atenção plena.
Esta automatização diminui o estímulo que suscita em nós grandes emoções… 
A atenção plena do início é substituída pelo funcionamento do hábito… Temos bem claro este aspecto quando observamos a mobilização emocional que gera nossos ritos iniciais de aprendizagem e experiências… 
Aprender a dirigir, o primeiro beijo, o primeiro dia de um estágio… Nossas primeiras vezes são sempre mobilizantes.

A sequência do cotidiano faz um gradual fechar de olhos psíquicos e através deste adormecimento movimentamos nosso corpo, nosso olhar, nossa escuta de tal modo que se pode dizer que somos existidos na vida por uma tendência.
Podemos dizer que somos uma repetição.
Uma repetição hábil em se repetir. 
Muitas vezes também temos que apreender que nosso modo de ser constituído, nos inabilita para as situações que escapam as realidades habituais… 
A personalidade nos faz engessados para algumas coisas.
Este engessamento impede o acolher das novas situações que se impõem e com isto uma pessoa sofre… 
Para viver a nova realidade há que se despertar… Isto envolve mudanças de funcionamento que demanda energia e propósitos fortes o que parece para muitos que será impossível mudar.

Não estamos prontos para tudo que acontece… Muitas vezes saímos vestidos com uma determinada roupa da cultura e do modo de ser e para prosseguirmos no andamento das atividades, precisamos retrair e nos vestirmos com outras peças para ficarmos coerentes com o momento, com os lugares e com os novos valores dos tempos.
Temos sim que, ao invés de fugirmos, encontrarmos o conhecimento da nossa inata plasticidade que nos confere uma vasta possibilidade de mutação e portanto viabilização para sermos continuamente viáveis.
 
Melhor viverá quem melhor se disponibilizar a ser arte de si mesma e evitar ser arte através do outro apenas… 
Estou sob o céu do entardecer da primeira segunda-feira de 2023 e pensei se fiz diferente estes dois primeiros dias. Posso dizer que fiz bem diferente a segunda-feira… Mantive os hábitos, mas quebrei alguns modos de viver algumas horas do meu dia.
Sob o céu de Copacabana eu era o Manoel, na minha casa, mas passei a trabalhar sob o céu numa das minhas varandas que nunca uso… 
Afinal a cultura também nos molda… Por isto quando viajamos podemos perceber que cada local imprime permissões e interdições diferentes de outros.
Tenho uma experiência muito forte que passei no Paris Langue, onde segui meu curso de francês em várias temporadas.
É um local com poucos alunos em cada sala, e por isto muito exclusivo. Na minha éramos dez.
Eu me sentava ao lado de uma japonesa que estudava lá com seu marido que aprendia francês para assumir o cargo de Diretor da Sony na França… 
Um dia a caneta dela caiu e eu peguei e entreguei a ela. Ela agradeceu com um sorriso abanando a cabeça positivamente. 
Na manhã seguinte antes do início da aula seu marido veio em minha direção e disse: 
“Manoel Bonjour… Massako vai passar a ter aula particular com o Paschal e na sexta ela irá fazer um almoço que será aqui após a aula em agradecimento a sua gentileza.”
Eu indaguei: “Mas ela vai estudar em casa sozinha?” Ele só respondeu “sim” e ponto final.
Achei estranho…  
Sabia que alguns homens japoneses conservavam a cultura em relação às mulheres que quando casavam apenas acompanhavam o marido.
E com isto o mundo dessas ficava restrito… Passei o tempo todo meio instigado com aquela mudança… 
No intervalo da aula daquele dia, Massako me procurou e numa fala rápida me disse: “Manoel é um prazer fazer o almoço de sexta em sua homenagem… Quero agradecer a sua gentileza comigo, mas me sinto desconfortável se deixar de ser honesta com você: Eu não tinha direito a pegar a caneta das suas mãos, meu marido não gostou, considerou um flerte e por isto fez com que eu passasse a ter aula em casa… O almoço é um agradecimento, mas uma despedida”.
Não acreditei no que estava ouvindo… 
Afinal se eu não pegasse aquela caneta do chão eu estaria sendo pouco gentil… Minha gentileza iria aprisioná-la.
Fui para casa naquele dia engasgado… 
Não queria nem tampouco participar daquele almoço que seria na sexta-feira. 
Discordava daquilo… Um conflito de cultura em pleno século 21.
Decidi procurá-lo no dia seguinte e falei: “Gostaria de falar sobre a razão do almoço e vou direto ao assunto. Você vai trabalhar no Ocidente, na França, e sinceramente acho que além da sua competência que o trouxe a este cargo e o francês que está aprimorando você deve atualizar seus princípios de comportamento… Trazer para Paris algumas regras sociais e costumes é continuar a falar seu idioma aqui...”
“No meu país e aqui também, se uma caneta de uma mulher cai em frente aos meus sapatos se eu nada fizer estarei sendo profundamente deselegante. Portanto estamos diante de um impasse e sinceramente não me sinto disponível para compactuar com sua inadequação e quero dizer que não estarei presente no almoço após a aula.”
“O inadequado é você que além do idioma deve assimilar alguns códigos do universo que você está se inserindo…” 
E vou dizer mais: “Esta história será dita por mim como um alerta da sua inabilidade para morar aqui…” 
Ele ficou muito reflexivo… Acabei indo ao almoço que registrei na foto a seguir e Massako continuou as aulas de francês em casa.

 


Fiquei muito triste que minha gentileza tenha sido maléfica para ela, mas, ao mesmo tempo, este conflito poderia despertá-lo para uma adequação cultural.
Alguns anos se passaram e eu estava no café Cassette, que amo, na rue des Rennes com minha taça de sancerre rouge e um plateau de fromage, quando, pelo vidro, vejo uma japonesa me acenando toda sorridente… Era Massako… 
Ela adentrou o café e me disse com um sorriso largo e numa postura mais livre:
“Manoel, que alegria reencontrá-lo… Quero dizer que graças a sua atitude com meu marido você gerou uma transformação na minha vida a ponto de eu estar aqui caminhando e mais livre.” Eu então aliviado e feliz disse: “vamos brindar com um verre du rouge”. Ela ficou meio paralisada e subitamente me respondeu “Oui… Porquoi pas?” 
E assim selamos uma transformação.
Esta experiência é muito expressiva na minha vida, me dá o testemunho que certos princípios que carregamos podem ser o fim da nossa existência, antes que a pele da morte nos envolva.
Por isto digo: Nem tudo que nos constitui serve para todas as fases da nossa vida… 
Salve Massako!

A cultura nos molda autorizando ou interditando, mas algumas são perversas, destrutivas no direito de existir com expressão e como sujeito… 
Fazem a pessoa ser um objeto… 
Pense nos aspectos que podem estar confinando sua vida… 
Tim-Tim!
Pense nisto!
Mas pense mesmo!


Manoel Thomaz Carneiro
Psicanalista/Psicofísico

Crédito das Imagens:
Desenho: Manoel Thomaz Carneiro
Fotos: Acervo pessoal de Manoel Thomaz Carneiro

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