Na minha corrida habitual, outro dia já na metade do percurso, subitamente ao desfocar meus olhos das reflexões que realizo quando a endorfina me faz estar em contato com o meu mundo subjetivo, vejo vir na direção contrária a minha um rapaz que há muito não o via. Foi um susto, pois há certo tempo ele de um jovem e saudável corredor havia se transformado num mendigo.
Acompanhei em tempos intercalados com tristeza e incompreensão a gradual decadência desse rapaz. A última vez que o tinha visto estava cercado de papelão na calçada da rua Barata Ribeiro, com calças rasgadas, pés imundos e um olhar amarelado, mas apesar de tudo ainda conservava a aura de alguém que não nascera naquelas condições.
Que alegria senti ao vê-lo saudável com uma roupa de corrida impecável resgatado de não sei qual pesadelo.
Após essa visão de esperança nos resgates da vida, de imediato, lembrei-me que havia citado na minha aula o conceito Aristotélico de Ato e Potência.
Segundo Aristóteles, pensador grego que viveu em torno do séc. VI antes da era cristã, as coisas podem estar em Ato ou Potência.
Ato representa aquilo que existe e a Potência o vir a ser de cada coisa. Como exemplo de Ato ele recorre a reflexão sobre a semente de uma árvore que contém o vir a ser e que se desenvolve através do movimento de extração da seiva necessária à realização do brotar e, portanto através desse processo faz surgir aquela vida que parecia inexistente.
A natureza não duvida de si mesma, não sofre das inseguranças e das terríveis desesperanças que o ser humano pode carregar, por isso ela sob o constante efeito dessa inabalável força sempre faz emergir as radiantes primaveras...
Quando encontramos algo quebrado, esta condição do objeto representa a realidade tal como está. Semelhante a quando se quebra um aspecto da realidade de uma pessoa... Mas que só permanece aprisionada na condição comprometida se nenhuma atitude de reformulação for despertada.
O potencial de modificação se encontra resistente e potente no interior da realidade degradada, como uma semente residente numa fruta passada. Esta semente salta ao futuro se a pessoa se responsabilizar em submeter a realidade deficitária ao movimento de restauração...
Em recente entrevista ao jornal O Globo o neurologista Leonard Mlodinow afirmou que a ciência vem mostrando que aquele que se depara e se enraíza na visão depreciada de sua realidade sem qualquer crença de continuidade possível irá se configurar no rol dos deprimidos e que o cérebro irá demonstrar isso. E, afirma “Porque a vida é dura e, mesmo assim, seguimos em frente. Temos que acreditar nos nossos talentos, nas nossas capacidades para ultrapassar todos os obstáculos que irão surgir inevitavelmente.”.
Quando olhamos um carro amassado por um acidente, a ruína pode ser transformada pela potência da decisão e do movimento de reconstrução. Acidentes de percurso amassam nossos sonhos, ou nossas relações afetivas, ou mesmo nossa saúde. Olhar para estas condições é olhar o Ato Aristotélico de constatar uma realidade comprometida. Será a abertura para a percepção de que pode ter-se uma nova realidade construída a partir da atual é que fará despertar a força em uso... A partir dessa alavanca de percepção e decisão que tudo na vida humana pode ser transformado.
Há um filme da década de 90 que se chamou O Pescador de Ilusões – The Fisher King – que discorre sobre a redenção de dois homens.
Na história o ator Robin Williams interpreta Parry um ex-professor de história medieval que vive em um mundo da própria imaginação a fim de isolar-se de uma tragédia do passado.
Quantas vezes percebo pessoas que se tornam um pouco sideradas para fugirem de um aspecto da realidade que não aceitam e que por isso se esmagaram na pedra pela falta de potência em se perspectivar com transformação para o futuro.
Há também no filme o ator Jeff Bridges que interpreta Jack Luca que é um homem que sempre conseguiu olhar a vida apenas a partir do topo do sucesso, mas a arrogância como um radialista conhecido desencadeia um incidente que o leva a uma queda vertiginosa na carreira. A partir daí sem dinheiro e sem perspectivas se vê arrancado do seu sentimento ilusório de imunidade diante das tragédias.
Quantos pensam que o poder os exclui das perdas, das dores e dos fracassos afetivos. Quantos se tornam displicentes com o que fazem se calcando numa ilusão de imunidade permanente...
Quantos Jack´s se destroem pela displicência em tomar conta e preservar a lucidez quanto à efemeridade das realidades...
O encontro de um com o outro pelas ruas e a amizade que constroem tecem uma mistura de humanização e cada um começa a absorver do outro o que falta em si para os recomeços. Jack encontra a ternura e a sensibilidade de Parry e este a resistência de Jack...
Esse filme nos fala sobre a construção de identidades novas através dos encontros de reciprocidade, de amizade e cumplicidade.
Também sobre o tema recomeços vi recentemente o filme Os Belos Dias, uma produção francesa de 2013.
A trama se desenvolve sob a história de Caroline, interpretada por Fanny Ardant, que quando se aposenta não sabe como se perspectivar diante da nova realidade. Depara-se com o “não-ser” que significa estar destituída da habilidade de se sustentar numa realidade.
Quantas vezes uma pessoa se sente distanciada das visões de continuidade...
Quantas vezes uma pessoa na vida acha que a saída inexiste...
Caroline no esvaziamento de uma fase começa a percorrer caminhos e descaminhos até recuperar a percepção do que era essencial a ela e com isso resgatar a possibilidade de desenvolver com calma a capacidade de se sustentar nas escolhas realizadas.
Há sempre uma semente de recomeço em cada realidade.
A vida em ruína é como um apartamento que você visita para comprar... Há que se olhar o potencial do possível.
A Casa Cor reflete bem através das exibições dos ambientes estruturados em tempos recordes, como o projeto do arquiteto Maurício Nóbrega, deste ano, de uma cobertura construída em 30 dias, que há possibilidades de construções do belo e do confortável sobre o esqueleto arquitetônico, quando é lógico se assume sem trégua a intenção de potencializar mudanças...
O Filme francês Os Belos Dias tem como título original O Pacto que retrata perfeitamente o teor daquela história de recomeços... Pois nos apresenta que qualquer acordo com as mudanças se realiza através de um pacto que se estabelece consigo... O pacto do bom futuro...
O pacto de criar os conteúdos do futuro através do Devir a Ser...
O rapaz corredor de algum modo estabeleceu um pacto de se reconstruir para os Belos Dias.
Se foi dada uma oportunidade, ele com certeza a pegou com mãos aristotélicas e se apropriou desse modo do contato com a potência... Saiu da miséria das mentes que são destituídas das riquezas fundamentais. Ao invés de ser pedinte se tornou fornecedor da imagem dos bons possíveis.
Resgatou, se reergueu e voltou ao mundo da potência dizendo a mim e a todos que desejam ouvir que existe sim uma Existência sempre em nós a espera de ser realizada...
Qual ambiente você precisa redecorar na sua existência?
Recorra à mão Aristotélica e a realize.
Mãos a Obra! Crie o seu mundo com potência.
Como escreveu Drummond numa crônica chamada Música no Táxi: Ninguém precisa ser grande em nada, uma vez que cultive alguma coisa bonita na vida.
Para mim, uma coisa bonita a ser cultivada?
Entre tantas, ponho no topo das minhas prioridades:
Procurar Saber Existir com Sensibilidade e Potência.
E, você?